Estou confuso... Não adianta... Hoje eu vivo confuso...
Por mais que eu tente, existem
lacunas que não consigo preencher...
É como um jogo de quebra-cabeças em que
faltam peças e as que remanescentes não se encaixam...
Lembro de celas pequenas, frias,
úmidas, as “geladeiras”, onde não se podia ficar em pé, onde se era jogado nú,
machucado, onde a gente tinha o corpo molhado com água fria e nos deixavam
tanto tempo que uma eternidade parecia pouco... Sentia frio, fome, sede, dor...
Ou calor, fome, sede, dor... Já não sabia... Não sabia...
Lembro de ter resistido (Horas?...
Dias?...)
O tempo... Perde-se a noção do
tempo quando estamos fechados, sem ver a luz do sol, sem poder dormir...
Medo... Muito medo... Medo
dos ratos... Medo dos "ratos" armados, medo dos ratos roedores dos quais ouvia os guinchos, que ouvia e sentia correr em
volta... Medo que que estava acontecendo e do que estava por vir... Medo do
frio, principalmente do frio que sentia na alma...
Lembro de celas com janelas altas e
emparedadas além das grades... Janelas pelas quais jamais entrava a luz...
No teto, ao alto, uma lâmpada que
permanecia apagada quase que o tempo todo, chão frio de cimento e nada mais...
Na porta, de tempos em tempos
(quanto tempo?), por uma abertura, um rosto do qual mal se vislumbrava os olhos
e os dentes quando abria a boca para anunciar, com uma voz soturna e aos
berros:
- Late, cão imundo! Late ou não
come...
E depois de dias (quantos?) (ou
seriam horas?...), quando a dor da fome era maior que a dor das feridas abertas
pela tortura física e moral; quando a luz acesa era pior que a apagada, pois
feria os olhos desacostumados com a claridade; quando a sede fazia com que,
desesperado, bebesse minha própria urina; quando, humilhado, vencido,
desesperado, lati pela primeira vez, uma mão jogou a “ração” no chão,
misturando aquela lavagem com os dejetos, meus e dos ratos que me faziam
companhia, eu, ainda mais humilhado, me vi comendo aquela coisa azeda, fétida,
de quatro, como um cachorro...
Quantos éramos?... Não sabia...
Ouvia gritos, gemidos, grunhidos... Sons inumanos, saídos de gargantas humanas...
(Seríamos mesmo humanos?... Já não sabia... Já não sabia mais nada...)
Quando ouvia os passos se
aproximando, já começava a tremer... Sabia o que viria... Cadeira do dragão,
espancamento, “telefone”, pau-de-arara, afogamento, choques, sevícias e sabe-se
lá quantas mais formas de degradar se passava pela cabeça daqueles carrascos
sádicos...
Os torturadores se revezavam,
usavam-nos como “cobaias”, e o pior era a música, colocada alto, sempre
repetindo o mesmo estribilho: “Não adianta nem tentar me esquecer, durante
muito tempo em sua vida, eu vou viver”...
Sempre, sempre, sempre... Sempre a mesma coisa, monotonamente, sádicamente, de forma cruel...
Não sei quanto tempo fiquei nesse
lugar... O que sei é que às vezes, por conversas entreouvidas, ficava sabendo
que um companheiro ou uma companheira não havia resistido... Temia ser o
próximo...
Mas, pior do que o medo de tombar,
era o medo de não resistir e entregar os que estavam lá fora...
Lá fora... Onde era mesmo?... Será
que um dia existira um “lá fora”?... Será que voltaria a existir?...
Um dia, quando me encontrava mais
frágil, achando que não resistiria mais, quando a porta se abriu, ouvi uma voz
me ordenando:
- Tome esse sabão, essa “toalha” (um pedaço de pano sujo, molhado, roto), vá
se higienizar... Você foi trocado por um
embaixador...
A princípio não acreditei... Mas,
depois, limpo, com roupas limpas, vi que outras pessoas se juntavam a mim,
companheiros e companheiras de infortúnio, esqueléticos como eu, parecendo espantalhos dentro das roupas maiores, como eu, com as marcas da
tortura espalhadas, como eu, mas muito mais visíveis pelo olhar, como o meu...
Não ousávamos nos falar, as perguntas
martelando na cabeça, mas os olhos no chão, cabisbaixos, em silêncio,
trocando rápidos efugidios olhares, com as mesmas interrogações carcomendo nossos cérebros, fomos colocados em um furgão, enchendo-nos de mais dúvidas ainda...
Pra onde nos levavam? Que diabos nos aguardava?...
Fomos levados direto para o aeroporto, onde encontramos outras pessoas com o mesmo olhar desconfiado... O mesmo ar desolado, sofrido... O mesmo semblante torturado...
Só quando nos vimos no avião é que
ousamos nos comunicar. Fiquei sabendo que um grupo havia sequestrado um
embaixador e que havíamos sido trocados pela vida dele...
E mesmo assim, ainda existia o temor: para onde estamos sendo levados? Seríamos jogados em alto-mar, como ouvíramos contar que acontecera a outras pessoas que ousaram ter o mesmo sonho que o nosso e que se transformara no pesadêlo, que viverámos por meses (ou seriam horas?...)
Hoje, ainda trago as sequelas
daqueles dias (ou seriam anos?...) em que fiquei preso... Não gosto de lembrar,
não gosto de falar sobre isso...
Não consigo ouvir “Detalhes” sem
ouvir junto os risos sardônicos, as risadas histriônicas, as vozes dos
carrascos exigindo que eu confessasse e entregasse nomes, endereços...
Tenho cicatrizes pelo corpo que se
fecharam, mas ainda trago cicatrizes abertas na alma, no peito e na mente...
Hoje, só hoje, quando acredito que a sociedade parece estar mais atenta, quando as pessoas estão lutando para abrir os arquivos secretos da ditadura e se acena com uma Comissão da Verdade, quando existe a possibiidade de se rever a Lei da Anistia para que os responsáveis por tantos crimes hediondos sejam punidos, somente hoje, eu confesso o meu
crime:
Acreditar em um mundo melhor, sem
opressores e oprimidos, dominadores e submissos, carrascos e vítimas...
Acreditar que podemos lutar por uma sociedade socialista!
E, ainda hoje, EU ACREDITO!
Esse post faz parte da 5ª Blogagem Coletiva #desarquivandoBR